Antes da Internet, do MP3, do Youtube, do Napster, do Torrent e do Spotify, os fãs eram totalmente reféns das gravadoras, que não estavam interessadas em lançar nada que não fosse capaz de gerar lucro, muito lucro. Migalhas não interessavam. Que se danasse quem fosse fã de uma banda obscura. Na melhor das hipóteses, era possível comprar LPs importados por preços que beiravam o absurdo. Na maioria das vezes, nem isso era possível.
As redes sociais trouxeram aprimoramentos notáveis no que se refere a manter contato, não apenas com parentes, amigos, conhecidos, colegas e ex colegas de trabalho, colégio e outros grupos sociais, mas principalmente com pessoas que tem afinidades parecidas. Com o Orkut e suas comunidades foi possível reunir, em uma escala jamais imaginada, milhares de simpatizantes de um mesmo assunto.
Na Iron Maiden Brasil, conheci Ricardo Lira, um estudioso da história da banda, com interesse especial pela obscura fase do primórdio, quando o Maiden era uma banda pequena e desconhecida do grande público, teve diversas formações e tocava principalmente no circuito de pubs londrino.
Muitos fãs sabem que, antes de integrar o Iron Maiden, Nicko McBrain tocou no Trust e Adrian Smith no Urchin. Porém, quem realmente teve a chance de conhecer o som dessas bandas?
Lira, que rapidamente foi apelidado de “Lirapedia”, desentrincheirava os fatos até então inacessíveis. Dúvidas como “em quantas bandas e projetos tocou algum integrante ou ex integrante?” ou “em quantos shows tocou Thundestick?”, eram solucionadas com facilidade e embasamento. Foi através dele que nós, frequentadores da comunidade, pudemos ouvir pela primeira vez a voz de Dennis Willcock, cantando com a banda Gibraltar, formada após sua saída do Maiden.
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Eu e Ricardo Lira no Rio de Janeiro, em 2009 |
Sem tirar o mérito de Lira, não foi tão difícil descobrir que muitas de suas fontes eram os próprios ex integrantes. Com o Facebook, muitos deles estavam lá, acessíveis e prontos para contar suas estórias.
Muitos fãs consideram Steve Harris alguém completamente íntegro, quase que imaculado. Entretanto, há muito tempo o Maiden deixou de ser uma banda para tornar-se uma empresa, que pode ser tão feroz quanto qualquer outra quando deseja defender seus interesses.
Paul Day, o primeiro vocalista, garante que a música Strange Word, gravada no primeiro álbum, em 1980, e creditada a Steve Harris, é de sua autoria: “Eu escrevi a letra poucos meses antes de me juntar à banda e trouxe também a melodia. Somente 4 palavras foram alteradas. Eu não posso provar porque não guardei nenhuma gravação ou fiz acordos. Dói saber que a primeira música que compus foi gravada em um álbum de grande vendagem e ninguém sabe que é minha”.
Com Thundestick, a treta foi ainda mais embaixo: a música "Thunderburst" (do Samson) é creditada a ele e co-escrita por Steve Harris, mas "The Ides of March", no álbum "Killers", do Iron Maiden, é creditada somente a Steve Harris. É a mesma música gravada por duas bandas, com o arranjo levemente diferente.
“Fui convocado para uma reunião na sede da gravadora. Steve Harris, Rod Smallwood e um representante legal estavam presentes e eu, é claro, sem nenhuma representação. Explicaram que Steve Harris seria o co-autor da música do álbum "Head On", enquanto que, sob nenhuma circunstância, eu seria creditado como co-autor em "The Ides Of March". Se eu quisesse contestar isso, eu teria que fazê-lo por meios judiciais. Como não havia nenhuma evidência para provar quem tinha escrito o que, embora eu possuísse uma fita onde eu e Steve tocávamos a música em sua fase de composição, eu não tive outra opção senão aceitar as condições como foram apresentadas”.
Há, ainda, outros casos, como o de Dennis Willcock, que contesta judicialmente a autoria ou co-autoria de meia dúzia de composições. Se é ou não verdade, cabe à justiça decidir. Mas é inequívoco admitir que em outras ocasiões a banda foi processada – e perdeu – ou simplesmente acusada de plágio. Os casos mais famosos: o riff inicial de “Midnight Chaser”, do White Spirit, foi gravado 4 anos antes de “2 Minutes to Midnight”.
Life's Shadow, gravada pelo Beckett em 1974, traz os mesmos riffs de “The Nomad”, gravados no álbum “Brave New World” em 2000. Houve também o caso de Hallowed be thy Name, em que a música chegou a ser retirada do setlist por algum tempo, devido às acusações de plágio. A banda pagou aproximadamente £100 mil para encerrar o processo legal.
Tudo isso fez com que eu me interessasse tanto quanto Lira pela pré-história da banda, embora não com a mesma competência que ele. A princípio, comecei a traduzir entrevistas de sites estrangeiros com ex integrantes para o Whiplash. Depois, em 2014, adicionei alguns deles no Facebook, como Bob Sawyer, Dennis Willcock e Terry Wapram, e conduzi minhas próprias entrevistas.
Com Willcock, desenvolvi o que julguei ser uma amizade. Nós conversávamos constantemente, e não apenas sobre o Iron Maiden e demais bandas de sua carreira. Quando descobri que uma de suas paixões era o automobilismo, perguntei se ele gostaria de receber, como presente, autógrafos de grandes pilotos. Isso o animou imediatamente. Em pouco tempo, enviei a assinatura de Emerson Fittipaldi e, algum tempo depois, de Niki Lauda.
Quando retomou a carreira, Willcock montou uma banda que mesclava seus trabalhos com Gibraltar e V1. No Facebook, postou perguntando se alguém poderia indicar um profissional que fosse capaz de desenvolver o site da banda. Eu indiquei o brasileiro João Duarte, com experiência no desenvolvimento de web sites para diversas bandas nacionais e internacionais. Dennis o contratou e me enviou, como agradecimento, um LP, um CD e uma camiseta, tudo autografado por ele e por Terry Wapram, e a pequena mensagem reproduzida abaixo. Em 2017, João foi também responsável pela arte da capa do álbum “Armageddon - End Of The Beginning”, do V1.
Em 2015, o holandês Erwin Lucas e o inglês Andy Holloway fundaram a WatchOut Records, com a ideia de reunir ex integrantes para lançar uma coletânea - Origins of Iron - com músicas de suas carreiras pós Iron Maiden.
Eles, como eu, tinham o sonho de conhecer todos os músicos que passaram pela banda, mas suas possibilidades eram bem melhores que as minhas, já que estavam no continente correto. Em um primeiro momento, conseguiram contatar Terry Rance, Dave Sullivan, Bob Sawyer, Dennis Willcock, Tony Moore, Thunderstick (Barry Purkis), Terry Wapram e Doug Sampson. Todos participaram da festa de lançamento do álbum.
Com o relativo sucesso da empreitada, decidiram criar um festival anual em Londres para homenagear o falecido baterista Clive Burr. Mais do que isso: todo o dinheiro arrecadado seria revertido para a Hit ‘em Hard for MS: The Clive Burr Foundation, que é um órgão de caridade fundado por um primo de Burr para ajudar pessoas que possuem o mesmo problema que causou a morte do baterista em 2013. A doença que o matou, esclerose múltipla, ataca o sistema nervoso central e interfere na capacidade do cérebro de controlar funções como caminhar, falar e outras. Foi então que nasceu o Burr Fest, cuja primeira edição se realizou em 2017.
Em agosto daquele ano, eu soube que a primeira banda de Steve Harris, Gypsy’s Kiss, se apresentaria ao vivo pela primeira vez desde 1973, na segunda edição do festival, com sua formação original exceto, é claro, Harris. Imediatamente comprei as passagens e reservei o hotel. Em seguida, providenciei o passaporte, já que não fazia uma viagem internacional fora da América do Sul desde que era criança.
Comecei o planejamento, definindo que o objetivo primário era conhecer pessoalmente o máximo possível de ex integrantes do Iron Maiden. O secundário era visitar o máximo possível de lugares relacionados de alguma maneira à história da banda. Baseado em uma matéria escrita por Cris Maiden, em 2012, para o site "Iron Maiden Brasil", eu tinha um bom roteiro de lugares para visitar em Londres.
Falei com Dennis Willcock, pedindo ajuda na tarefa de reunir o máximo possível de ex integrantes, para que eu pudesse conhece-los. Também me dispus a pagar quaisquer despesas que isso pudesse gerar (locomoção, hospedagem, alimentação etc.), mas ele respondeu "você não pagará nada, eu farei acontecer".
Meu inglês não é bom o bastante e, particularmente, não gosto do sotaque britânico, acho mais difícil de entender do que o americano. Não me senti seguro para realizar essa viagem sozinho, principalmente quando fosse encontrar os ex integrantes. Na web, ainda é possível invocar a ajuda do Google Translator, mas pessoalmente não. Então, chamei uma amiga, Ysabella, para viajar comigo. Eu pagaria as passagens mas, em troca, ela trabalharia alguns dias para mim como intérprete.
Foram longos cinco meses até o embarque. Nesse meio tempo, sem maiores explicações, Dennis Willcock se tornou alguém muito estranho, que praticamente não respondia mais às mensagens e parecia pouco se importar com a proximidade de minha viagem.
Esta é a primeira parte de um texto sobre minha experiência em Londres em 2018. Se quiser ler a segunda parte, clique aqui.
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