sexta-feira, 10 de junho de 2016

O dia em que minha vida mudou

Minha mãe, então com 64 anos, convivia há anos com câncer de mama, ossos e pulmão. Ela passou a semana internada, mas era algo rotineiro, pois aconteceram várias internações nas semanas anteriores. Era internada, retirava líquidos do pulmão, recebia alta. Algum tempo depois, era internada novamente, era um processo cíclico.

Por volta das 15:00 hs, recebi um telefonema de minha avó materno, dizendo que meu avô sofreu uma queda no quarto e não conseguia se levantar. Ela não era forte o bastante para levanta-lo, então decidiu pedir minha ajuda. Como eu morava há apenas duas quadras de distância, cheguei rápido, o levantei, e retornei para casa, dizendo que, se fosse preciso, bastava me ligar novamente. Ela tinha 84 anos e ele 89.

Mal sentei em frente ao computador, e o celular tocou novamente. Desta vez era uma mensagem do meu pai, dizendo algo como "sua mãe sofreu um ataque, ela está entubada, tem seis médicos em volta dela, me retiraram do quarto". Sabendo que, se fosse lá, eu não poderia ajudar em absolutamente nada, e que talvez fosse mais útil se ficasse perto dos avós, respondi que aguardaria por novas notícias. 

Avisei a Sheila, que respondeu que iria ao hospital quando saísse do trabalho. Por volta das 23:30 hs, sem nenhuma notícia ainda, ela retornou para casa. A ideia era dormir um pouco e retornar na manhã seguinte. É claro que tinha uma certa tensão no ar, então foi difícil adormecer. Conversamos sobre tudo o que aconteceu naquele dia maluco e vimos alguma coisa na TV.

Por volta de 02:30 hs, o telefone tocou. É claro que eu já sabia o que tinha acontecido. Sheila atendeu e perguntou se ele queria que fôssemos encontra-lo imediatamente. Ele respondeu que não era necessário, pois não daria para fazer nada até amanhecer. Ainda assim, achamos que seria o adequado. Nos arrumamos, chamamos o Uber, e fomos.

Quando chegamos, ele estava na recepção do hospital, encolhido em um sofá, quase em posição fetal. Disse que só não havia se matado ainda porque prometeu que cuidaria dos pais dela e dos gatos. Pausa para uma afirmação: ele só cumpriu a primeira promessa, a segunda não. Retomando, eu disse a ele que tínhamos um problema ainda maior do que a morte: contar aos pais dela, afinal, ambos eram vivos. Pior: não sabiam de nada, nem ao menos desconfiavam que estivesse doente.

Minha mãe teve câncer de mama pela primeira vez em 2005. Foram anos de radioterapia, quimioterapia e uma mastectomia até atingir a remissão (ou seja, a fase em que não há sinais de atividade da doença, mas que não é possível definir o paciente como como curado) em 2010. Dois anos depois, o câncer voltou com força total, atingindo a outra mama e ossos.

Ela decidiu esconder sua real situação dos pais. Ao menos uma vez por semana, geralmente no domingo, ela almoçava no apartamento deles e fingia estar bem. Quando sozinha comigo, às vezes reclamava das dores nos ossos, mas na frente dos pais mantinha-se como se nada estivesse doendo. Se por acaso escapasse algum gemido, ela inventava um motivo na hora: "escorreguei no quintal, mas não foi nada, estou quase bem". Muitas vezes tinha falta de ar, então inventava alguma desculpa, tipo "esqueci de alimentar os gatos" e voltava para casa, direto para a máscara ligada ao tubo de oxigênio.

Meus avós, se soubessem, fariam de tudo para salva-la - ela era filha única - mas resta saber se ela queria ser salva. Estava cansada de exames, picadas, infecções, biópsias e todos os tratamentos relacionados ao combate ao câncer. Minha opinião? Dane-se que é minha mãe, a vida é dela, e ela deveria decidir como viver ou morrer, assim como eu pretendo decidir sobre isso quando for a minha vez.

Eu não sou um suicida em potencial, mas existem certas situações que me levariam, sim, a tirar minha vida. Não é o único, mas citarei um exemplo: se eu fosse diagnosticado com esclerose múltipla, me mataria antes que a doença me reduzisse a uma plantinha de aquário pensante, fadado a morrer sufocado porque os músculos que fazem o ar entrar nos pulmões seriam, enfim, paralisados. Não deve ser nada legal não poder nem limpar a própria bunda, com certeza, prefiro um tiro na cabeça. Se tem quem consegue ser feliz vivendo assim, parabéns. Eu não consigo!

Enfim, alguém tinha que dar a notícia aos pais dela. Nós três nos sentíamos capazes de faze-lo, e a ideia era chegar ao apartamento assim que o dia clareasse, para dar a pior notícia da vida deles. Porém, após passar pela agência central do serviço funerário municipal para obter a certidão de óbito, e realizar as contratações necessárias para o sepultamento, soubemos da necessidade da presença de um membro da família no hospital, para dar sequência aos procedimentos da liberação do corpo para o carro funerário, que o conduziria ao cemitério.

Embora eu não tenha concordado completamente, ficou decidido que, na abordagem aos avós, a presença de meu pai era absolutamente necessária, já que ele era o único condutor legalmente habilitado - se algum deles passasse mal, bastaria coloca-lo no carro, que ele dirigiria ao Hospital São Camilo, distante apenas cinco quadras de onde residiam. Sheila também tinha mais tato do que eu para falar. Então, coube a mim aguardar no hospital. Eles me deixaram lá e seguiram para o apartamento.

O carro funerário já estava à minha espera. Pensei que teria que assinar algum papel, resolver alguma burocracia, mas que nada! O motorista, que estava sozinho, precisava de mim para... colocar o corpo no caixão!!!! Inacreditável! Fiquei chocado, mas ok, se era necessário, iria fazer. Ele me levou a uma sala, onde havia um saco para cadáveres em cima de uma maca. Você já carregou um peso inerte e disforme de 70, 80 quilos?! É pesado pra caralho! Tentamos ser minimamente cuidadosos, mas não havia onde pegar, escorregava. Na prática, o que fizemos foi quase que derruba-la da maca para o caixão. Nunca pensei que teria que viver uma cena como essa.

Segui com o papa-defunto, ops, motorista, no banco de carona do carro funerário. Por todo o caminho ele tentou vender diversos serviços adicionais, mas eu não estava interessado. A bem da verdade: não era minha mãe quem ele transportava, era o que restou dela. Minha mãe partiu, estava sabe-se lá onde agora. Eu não me importava nem um pouco se ela ficaria bonita no velório ou se o corpo começaria a soltar líquidos. Porém, meu pai ligou para meu celular, ficou sabendo das ofertas, e aceitou algumas. Portanto, antes de seguir ao cemitério, fomos a uma funerária, onde perguntaram se eu gostaria de acompanhar os procedimentos, mas preferi ir embora e esperar no cemitério. Apenas paguei e deixei o corpo para que fizessem o que quer que tivesse sido combinado.

O carro trazendo o corpo "embelezado" chegou exatamente no mesmo momento em que avistei os avós, Sheila e meu pai descendo do carro. Minha avó veio até mim e perguntou onde estava a filha dela, eu apontei para o carro logo ao lado dela. Ela viu o caixão e desabou no choro, foi uma cena bem triste. Funcionários do cemitério vieram, o carregaram e deixaram na sala de velório. Aproveitei o momento para ir à lanchonete do lugar para tomar um café. Eu e Sheila já estávamos acordados há quase 24 horas.

Era necessário retornar, pois meu avô fazia hemodiálise três vezes por semana, e aquele era dia de sessão. Não daria para esperar pela próxima, que ocorreria em três dias, pois seriam cinco dias sem fazer, seria muito. Então, meu pai o levou, e aproveitou para passar em casa para limpar a sujeira dos gatos e também para alimenta-los. Eu os acompanhei. Antes de sair, entretanto, minha avó me chamou e me deu 50,00. Olhei com cara de "wtf?", e ela me disse para comer alguma coisa com o dinheiro. Então, aproveitei que teria que esperar a sessão acabar para comer um lanche no Mc Donalds.

Após buscar meu avô, retornamos. Eu não avisei ninguém, não fiz um telefonema sequer, apenas postei uma despedida no Facebook, o que rendeu centenas de condolências - agradeço a cada uma delas. Um de meus melhores amigos, Rômulo, viu a postagem e se dirigiu ao cemitério, onde passou conosco o dia todo, até o enterro, que foi às 16:00 hs. Depois, como Sheila ainda não havia comido nada, ele nos levou à Pizza Hut, onde comemos, e nos deixou em casa.

Sheila enfim me contou como foi com os avós. 06:00 hs, ela e meu pai tocaram a campainha. Os avós já estavam acordados, tomando café da manhã. Minha avó abriu a porta e só viu os dois com cara de velório. Já entrou em desespero imediatamente, achando que havia acontecido algo ou com minha mãe ou comigo, afinal, não estávamos ali. Sheila pediu para a avó se sentar, contou o que aconteceu, diz que ela não conseguia nem responder... Já meu avô não teve reação alguma. Simplesmente disse algo como "então ela morreu?", sentou e ficou quieto... Enfim, a vontade de viver de minha avó acabou naquele dia. Ela se deixou morrer cinco meses depois, mas isso é outra estória.